* O Cordeiro de Frankenstein e Dolly Parton
















fotos: llunkes

Quando Dolly, o célebre clone, surgiu de um inusitado procedimento que mais se assemelhava à receita "high-tech" de uma “shepherd's pie” (um escondidinho britânico à base de carne de ovelha) do que à artesanal e arcaica maneira de os seres animados se reproduzirem, pegou o mundo de surpresa. Perplexa, a humanidade reagiu rapidamente. Acalorados debates éticos, religiosos e políticos se sucederam e agruparam as estarrecidas opiniões em três exércitos distintos.

De um lado da batalha, estavam os supersticiosos criacionistas. Conservadores e fatalistas, reconheceram, na satânica ovelhinha, a abominável herdeira de Frankenstein. Amaldiçoando seus criadores, sentenciaram que tal ato de desamor contra as divinas leis da natureza seria severamente castigado. Era o advento do apocalipse.

Na outra extremidade do ringue, contrapunham-se os arrogantes evolucionistas. Progressivos e otimistas, identificaram, na abençoada cordeirinha, o santo graal da ciência. Glorificando seus criadores, anteciparam que tal ato de amor em favor das divinas leis da natureza seria generosamente recompensado. Era o advento da imortalidade.

Na coluna do meio - opondo-se a "lhufas" nenhuma - localizava-se a “carnavalesca-e-sem-tempo-a-perder-com-as-enfadonhas-divagações-da-humanidade” ala do samba, que, dispensando a via-sacra de superficialidades, fora direto ao ponto que realmente interessava a esses egóicos dionisíacos: por que, afinal de contas, os orixás marqueteiros batizaram esse novelinho gótico de Pequena Dorothy (Dolly)? A resposta encheria seus corações entediados de júbilo e regozijo. Era o advento de um novo entretenimento. Efêmero, porém indispensável.

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Dolly, como muitos devem lembrar, fora criada a partir da célula de uma mama. Havia, entretanto, outras características de semelhança entre essa franzina cópia rural e, digamos, sua farta mentora espiritual - Dolly Parton - além das circunstâncias mamárias de ambas e do nome em comum. Tanto a primeira quanto a segunda eram, em seus tempos de glória, loiras admiráveis, cobiçadas country-girls, artificialidades assombrosas que conquistaram o status de celebridade no rarefeito universo da fama.

Enquanto uma tornara-se o símbolo máximo do controle biológico, a outra, na contramão das coincidências, fez-se o suprassumo do descontrole biológico. Certa vez, concorrendo secretamente em uma disputa que premiaria a drag-queen que mais se assemelhasse à sua icônica e pouco lacônica figura, Dolly Parton perdera para a versão mais exagerada de sua imitação, para o constrangimento da platéia presente. Cientes dos sinais ocultos por trás do alegórigo acontecimento, os alarmistas soaram freneticamente todas as campaínhas, à espera do pior. Era chegada a hora, não havia dúvidas, do agonizante apocalipse, para o júbilo geral e incontido da alheia-porém-fervidíssima-ala-dos-descomplicados-carnavalescos.
Kyrie Eleison!

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receita: Escondidinho Dolly (cordeiro, azeitonas, pinolis, martini, purê de mandioquinha e crème brûlée de laranja)

(para 6 pessoas como entrada ou 4 pessoas como prato principal)

O escondidinho, apesar de o nome sugerir um caráter reservado e avesso às massas, virou, praticamente, uma presença crônica nas festas agitadas por aí. E já que o "tímido pastelão" veio para ficar - ao que tudo indica -, resolvi adotar o guri e criar uma releitura, digamos, mais ousada e afinada com o seu novo status de rock-star. Ao manipular “geneticamente” três fantásticos pratos da gastronomia mundial (o britânico shepherd’s pie, o sul-africano bobotie e o francesíssimo crème brûlée), a roupagem “fusion” proposta abaixo surpreenderá pela sua inusitada alquimia de novos sabores e texturas. O elemento da receita que, em um primeiro momento, afastaria os paladares mais tradicionais e desconfiados é, contraditoriamente, o componente que dá o toque surpreendente ao prato - o créme brûlée de laranja . Seu sabor levemente adocicado, caramelado e cítrico combina deliciosamente bem com o cordeiro e propõe um adicional contraponto textural, ao mesmo tempo, sedoso e crocante . Não tenho a menor dúvida que você aprovará o resultado. Depois me conte sobre as suas impressões. Bom proveito.




para o ragú de cordeiro
(com essa receita do ragú, você obterá o dobro do volume necessário para fazer os escondidinhos . Não seria lá muito prático, entretanto, fazer menos do que a quantidade proposta. Utilize, então, a parte que cabe para executar a receita abaixo e congele o restante para uma outra ocasião. Afinal, é sempre legal ter algo bacana no freezer para uma emergência.)

óleo de oliva
70 g de bacon, cortado em cubinhos pequenos
6 dentes de alho, laminados
1 cebola pequena, cortada em cubos
1 talo de aipo, cortado em cubos pequenos
1 cenoura grande, cortada em cubos pequenos
½ colher de sopa de sementes de erva doce
700 g de cordeiro magro moido
400 g de tomates inteiros em lata com o suco
1 xícara de martini seco
2 folhas de louro
4 cravos da índia
½ colher de chá de pimenta calabresa (opcional)
3 colheres de sopa de cebola em flocos
3 ramos de tomilho
sal
150 d de azeitonas (sem o lìquido), fatiadas
6 colheres de sopa de pinolis, torrados (opcional)
salsinha picada
1 ovo batido
3 fatias de pão branco umedecidas no leite e esmagadas até formar uma pasta grossa

para o purê de mandioquinha
700 g de mandioquinha
200 ml de creme de leite fresco
100 g de manteiga sem sal
sal marinho e pimenta do reino
pitada de noz moscada

para o lençol de creme brûlée
250 ml de creme de leite fresco
1 colher de sopa cheia de açúcar
pitada de sal
3 gemas
raspas de uma laranja
açúcar para queimar o creme

PROCEDIMENTO
para o ragú
1. Coloque em uma panela de fundo grosso o bacon, o alho e um pouco de óleo. Leve ao fogo alto e deixe fritar por alguns minutos, sem deixar o alho dourar. Acrescente a cebola, o aipo, a cenoura e as sementes de erva doce. Deixe cozinhar por mais uns 2 minutos, sempre mexendo.
2. Acrescente a carne de cordeiro e continue fritando por mais uns 5 minutos, quebrando os aglomerados de carne que vão se formando a medida que a carne cozinha. Inclua os tomates, o vermute, a calabresa, a cebola em flocos e o tomilho. Tampe a panela, baixe o fogo ao mínimo e deixe cozinhar por 45 minutos. Não esqueça de checar a cada 15 minutos para não deixar o cordeiro grudar no fundo da panela.
3. Acrescente as azeitonas , tampe a panela e deixe cozinhar por outros 30 minutos ou até o líquido evaporar e formar uma massa espessa. Desligue e deixe esfriar. Inclua a pasta de pão, os pinolis, a salsinha e o ovo batido. Misture bem. Reserve.

para o purê de mandioquinha
1. Cozinhe as mandioquinhas em água e sal até ficarem macias. Escorra e amasse.
2. Numa panela pequena, ferva o creme de leite. Desligue e inclua a manteiga. Derrame sobre as mandioquinhas amassadas e faça o purê. Tempere com sal, pimenta e noz moscada. Reserve.

para o lençol de creme brûlée

Bata as gemas, o sal e a colher de açúcar. Acrescente o creme de leite e as raspas de laranja. Reserve.

Finalizando1. Unte 6 forminhas refratárias (ramekins) ou uma forma grande com manteiga. Distribua o purê de mandioquinha, fomando a primeira camada do escondidinho.
2. Em seguida, espalhe o ragu de cordeiro sobre o purê. Pressione-o levemente de forma a obter uma superfície nivelada e homogênea.
3. Derrame o creme de ovos sobre o cordeiro. Leve as forminhas ao banho-maria.
4. Banho-maria: Transfira os ramekins para uma forma refratária grande. Derrame água fervente na forma com cuidado até esta atingir 2/3 da altura das forminhas. Leve a forma, cuidadosamente, ao forno à temperatura de 180 graus. Asse o escondidinho por, aproximadamente, 30 minutos ou até o creme de ovos ficar com a consistência firme, como a de um pudim. Retire do forno. Remova as forminhas da água.
5. Polvilhe o açúcar sobre a superfície dos escondidinhos. Com o auxílio de um maçarico de cozinha, queime o açúcar (veja o vídeo). Sirva imediatamente. Bom proveito. Espero que você goste. Depois me conte.

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2 comentários:

louis disse...

luc: de fato, sem erro, paradoxal nos contrastes, a pimenta calabreza não é opcional, porém essencial para acentuar este efeito. uma preparação absolutamente bem concebida, primorosa.
obrigado pela sugestão
luiz

Luciano Lunkes disse...

bah, querido, vindo de ti, fico muito feliz. Tu tens algo de guru para mim! obrigado pelo comentário !